“Isto não é de agora. Há dentro da AGT uma rede de cobrança de dívidas e impostosque é antiga e que continua lá instalada. Os dois funcionários detidos são “arraia miúda”. O esquema vai continuar, disse uma fonte a imprensa.
O esquema era de fácil execução e não é novo, apesar de algumas alterações no procedimento, devido à informatização dos impostos, iniciada em 2019, com a entrada em vigor do IVA. Os dois funcionários da Administração Geral Tributária (AGT) detidos há uma semana, o responsável da Direcção de Cadastro e Arrecadação Fiscal e um funcionário do Gabinete de Tecnologias de Informação, abordavam as empresas com notas de liquidação de impostos, e nalguns casos multas, de valores elevados e negociavam reduções do valor, desde que uma parte fosse directamente para os seus bolsos. O empresário aceitava, entregava o valor pedido e no sistema da AGT eram introduzidos recibos de valor inferior ao imposto a pagar. No caso de multas, estas eram anuladas do sistema, segundo apurou à imprensa junto de várias fontes. Há também evidências de fraude nos reembolsos do IVA.
Uma semana após a detenção dos dois funcionários da AGT, e já depois do fecho da edição do Expansão, o Serviço de Investigação Criminal anunciou, esta quinta-feira, dia 30 de Janeiro, mais detenções na sede da AGT. Desta vez, foram detidos o administrador para as Direcções do IVA, Planeamento Estratégico e Tecnologias de Informação, o director de Cadastro e Arrecadação e o chefe de Departamento do reembolso do IVA, por factos que configuram os crimes de “acesso ilegítimo a sistema de informação e devassa através de sistema de informação, falsidade informática, associação criminosa e peculato, consubstanciado em indícios fortes do seu envolvimento no esquema fraudulento de pagamentos por compensação, relativamente ao reembolso do IVA”.
A existência de “inconformidades de alguns procedimentos que confirmaram operações irregulares de pagamentos de impostos no sistema” fez soar os alarmes dos órgãos inspectivos internos da AGT, o Gabinete de Auditoria e Integridade Institucional (GAII) e a Direcção dos Serviços Anti-Fraude, informa o comunicado da autoridade tributária, divulgado na sexta-feira, 24 de Janeiro, dia em que foram divulgadas as detenções.
Evidências de fraude fazem soar alarmes
Já o segundo semestre de 2024 ia a meio quando surgiram as evidências de fraude no sistema informático da AGT. Após uma investigação interna inicial, a Direcção dos Serviços Anti-Fraude da AGT entregou um dossier, com extensa documentação, ao Serviço de Investigação Criminal (SIC). Aí a investigação foi alargada, passando a contar com a colaboração de outras entidades, nomeadamente a Direcção Central de Combate aos Crimes Informáticos, o Gabinete de Cibercrime da Procuradoria Geral da República (PGR), elementos do Serviço de Inteligência e Segurança de Estado (SINSE), CISP e LCC, como declarou à TPA o porta-voz do SIC, Manuel Halaiwa.
Na sequência de buscas domiciliares foram “apreendidos 301 mil USD, 66 milhões Kz e 4.860 rands, além de duas viaturas topo de gama, em nome da esposa” de um dos detidos “que não trabalha”, acrescentou o porta-voz do SIC, que calcula que o esquema de fraude fiscal tenha “lesado o Estado em 7 mil milhões Kz, em 1.500 operações”.
O número de empresas envolvidas não foi divulgada, nem pelo SIC, nem pela AGT, para não prejudicar as investigações que continuam a decorrer e que poderão vir a redundar em mais detenções, como admitiu o superintendente-chefe Manuel Halaiwa. Os dois primeiros detidos incorrem na prática dos crimes de “associação criminosa, acesso ilegítimo de informação e sabotagem informática”.
Esquema antigo, novos métodos
A AGT garante que “os sistemas em uso na instituição asseguram um controlo rigoroso do cumprimento das obrigações fiscais” e que, “através dos seus órgãos inspectivos internos e da Direcção de Recursos Humanos, continua a trabalhar para reforçar os mecanismos de controlo interno e a assegurar uma conduta de rigor pautada pela integridade dos seus técnicos”. A autoridade tributária apela ainda à denúncia de qualquer tentativa fraudulenta de regularização de impostos, uma vez que “constitui crime e um acto lesivo ao interesse colectivo”.
Quanto às empresas que caíram no esquema e pagaram, por “baixo da mesa”, para “apagar multas” ou pagar valores inferiores ao imposto devido, poderão vir a ser responsabilizadas criminalmente. Uma hipótese que a AGT não confirmou ao Expansão, mas que tem precedentes em Angola, em anteriores esquemas de fraude fiscal.
Em 2017, quando quatro funcionários da AGT foram detidos por corrupção activa e fraude fiscal, entre eles Nickolas Neto, ex-director regional da AGT, o administrador da Tecnimed, empresa que caiu no esquema, e um funcionário também se sentaram no banco dos réus. A empresa, segundo o acórdão, pagou 170 milhões Kz, em dois pagamentos, para que fosse reduzido o valor de uma dívida para os 9.650.265 Kz (o equivalente na altura a 33 mil euros), segundo relatou a DW, no final o julgamento.
Os quatro antigos funcionários da AGT julgados pelo desvio de 500 milhões Kz de cobrança ilegal de impostos foram condenados, em Agosto de 2018, por corrupção activa, fraude fiscal, falsificação de documentos e branqueamento de capitais, a penas de prisão efectiva, que foram de cinco anos a três anos e seis meses de prisão. Os dois funcionários da Tecnimed foram condenados a uma pena suspensa de dois anos de prisão, para além de taxas de justiça de um milhão Kz.
“Isto não é de agora. Há dentro da AGT uma rede de cobrança de dívidas e impostos que é antiga e que continua lá instalada. Os dois funcionários detidos são “arraia miúda”. O esquema vai continuar”, disse uma fonte ao Expansão, que não acredita que estejam envolvidos apenas os dois funcionários detidos. “Há mais pessoas envolvidos, algumas são internas outras externas, que fazem a intermediação com as empresas”, acrescentou. As detenções desta quinta-feira, dia 30 de Janeiro, vieram confirmar as suspeitas, como refere o comunicado do SIC ao afirmar que “em sede das investigações em curso, determinou-se que o esquema é construído por funcionário de diversas posições, que aproveitando-se destes privilégios realizavam várias negociatas fraudulentas”.
O caso veio também lançar suspeitas sobre os contabilistas, que sabem quanto as empresas devem pagar de impostos. Por isso, alguns contabilistas com quem o Expansão falou defendem que a AGT deve divulgar os nomes das empresas envolvidas no esquema, para separar o “trigo do joio”.
Depois da detenção dos dois funcionários da AGT, há uma semana começou a circular nos grupos de contabilistas no WhatsApp um artigo de José Luís Magro, formador e auditor independente, com o título “Os 10 mandamentos do contabilista”, para que os profissionais que tratam da contabilidade das empresas conheçam os deveres e direitos da profissão, nomeadamente o direito a recusar o pedido do dono de uma empresa para cometer fraude fiscal.
Fonte: Expansão