Há quem defenda que o primeiro passo para corrigir o que está mal é reconhecer a existência do problema. Só que no caso do sistema judicial, da noção de justiça e dos pesos e contrapesos necessários para fiscalizar os entes e as entidades públicas, o problema maior pode estar mesmo na natureza do regime político angolano.
A autocrítica oficial faz parte do sumário executivo da Estratégia Nacional de Prevenção e Repressão da Corrupção (ENAPREC), que será implementada de 2024 a 2027, e que foi analisada em Conselho de Ministros no início de Junho. O governo justifica a pertinência de um novo documento estratégico com o “fim do período de emergência” no combate à corrupção, sendo que agora pretende promover a integridade, transparência e a melhoria da prestação de serviços em todos os sectores, bem como o envolvimento dos cidadãos na prevenção, detecção e repressão da corrupção. No entanto, os actores mais independentes defendem que é preciso vontade política para mudar a forma como o regime funciona.
“Apesar de não ter sido precedida de uma pesquisa ou estudo, e porque se reconhece a ineficácia dos serviços prestados pelas instituições públicas, derivada das más práticas, reputa-se de suma importância a elaboração de uma estratégia que vise promover um Sistema de Integridade Nacional e consolidar o princípio da transparência”, assinala o governo no documento que suporta a ENAPREC.
Na lógica governamental, a primeira fase de combate à corrupção ficou marcada pela Lei da Probidade Pública (aprovada em 2010), por declarações – que não passaram de mera retórica – de tolerância zero a actos deste género e depois, desde 2017, com a introdução de legislação sobre entrega voluntária de bens, recuperação de activos e aprovação do novo código penal, entre outras medidas.
Esta evolução reflectiu-se, em certa medida, na posição de Angola no Índice de Percepção da Corrupção, onde registou uma subida de 49 lugares, entre 2017 e 2022, para a posição 116, com perda de cinco posições em 2023.
Embora as melhorias sejam reconhecidas por diversos actores internos e externos, também é verdade que as críticas sobre a forma como têm sido aplicadas as políticas públicas no combate à corrupção incidem sobre a parcialidade, os parcos recursos disponíveis e a falta de coerência institucional. São críticas que se estendem à essência política do regime e à ausência de reformas profundas nesta matéria.
“Não creio que seja necessário mais um documento com objectivos difusos”, acredita Paulo Inglês, sociólogo e actual vice-reitor da Universidade Jean Piaget de Angola.
“Em tese não se combate a corrupção, mas controla-se administrativamente a fim de paliar os seus efeitos nefastos na vida das pessoas. Isso não se faz com um documento, mas com reformas sobre o funcionamento do Estado que, por sua vez, exige reformas políticas de fundo; estas dependem da vontade política e são sufragadas por eleições livres”, defende Paulo Inglês, que acaba por dizer aquilo que passa pela cabeça de muitas pessoas ao apontar uma relação directa entre a forma como o sistema político funciona e os mecanismos de controlo da corrupção.
No fundo, continua a pairar uma sensação inegável de selectividade, de promiscuidade e compadrio entre poder legislativo, judicial e executivo, ao mesmo tempo que se mantêm estruturas partidárias ou económicas (ou simplesmente de poder) sobre as principais instituições nacionais.
Este sentimento resulta em descrença sobre a justiça em geral, nem que seja apenas no plano mais filosófico – a maioria dos angolanos considera que recorrer ao sistema judicial é perigoso, demorado e ineficaz e que os movimentos de denúncia, por exemplo, estão condenados ao fracasso devido à falta de objectividade e independência das instituições públicas e privadas.
“Raramente as denúncias transformam as estruturas, mas podem activar indignação moral, que pode ser reconvertida em acções políticas”, explica o académico Paulo Inglês. “Aí sim, podem ter impacto na estrutura. Mas lá está, os dispositivos para estas transformações têm de ser parte do regime político e não, como acontece no nosso caso, em que o regime político não tem mecanismos de autocorreção porque ele próprio precisa de ser corrigido”.
Fonte: Expansão