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Exames forenses europeus não reconhecem ossadas de Sita Valles e José Van-Dúnem

Equipa de especialistas forenses portugueses que trabalharam em Angola a pedido da Plataforma 27 de Maio e com o consentimento do Executivo concluiu que as ossadas de oito corpos apresentados pela CIVICOP podem ser de quaisquer pessoas, menos de Sita Valles, José Van-Dúnem, Rui Coelho ou de qualquer outra vítima da chacina de 1977.

Na última terça-feira, 21, em Lisboa, sobreviventes e familiares das vítimas do 27 de Maio representados na “Plataforma 27 de Maio” reuniram-se para ouvir o que não gostariam, mas de que, infelizmente, já desconfiavam: dito pelo respeitado médico legista Duarte Nuno Vieira, professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, ficou cientificamente provado que as ossadas apresentadas pela Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP) não correspondem às vítimas que se presumia serem.

Entre os oito corpos estudados, retirados em Março de 2022 duma vala comum na zona dos Ramiros, 20 quilómetros de Luanda, o CIVICOP aventou a hipótese de estarem os nomes de José Van-Dúnem e de Sita Valles, bem como de Edmar Valles, irmão de Sita, e Rui Coelho, para além doutras figuras que encabeçaram a suposta tentativa de golpe de Estado em 1977 e cujo desaparecimento físico continua um mistério. No entanto, alguns familiares solicitaram uma investigação forense paralela para apurar a veracidade desta informação, considerando que estavam a ser alvos de uma encenação.

O ex-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal de Portugal, Duarte Nuno Vieira, liderou uma equipa integrada pelas antropólogas forenses Eugénia Cunha e Inês Santos, bem como um especialista da Polícia Judiciária portuguesa, que se deslocou a Luanda em Julho de 2022, em representação da Associação de Órfãos M27, e explica que os corpos não pertencem a quem o CIVICOP disse pertencer.

“Foram feitos estudos genéticos, que são sempre a última prova, e podemos dizer que os corpos não pertencem a nenhuma das vítimas a quem se presumia que pudessem corresponder”. Segundo o especialista, foi feito, em primeira instância, um estudo antropológico, mas tal não permitia chegar a uma identificação concreta, por isso se procedeu ao que chamou de rainha das provas.

“Os familiares deram amostras de sangue e de saliva, tipámos os perfis de ADN dos familiares e depois colhemos amostras nos esqueletos dos vários corpos e tipámos os perfis de ADN dos corpos que tinham sido entregues, o que nos permitiu ver que não há coincidência, não correspondem, não são os familiares dessas pessoas”, afirmou.

O grupo de trabalho envolveu especialistas em Antropologia, a Polícia Judiciária Portuguesa, que já tinha tido participação no mesmo processo a pedido oficial do Estado angolano, e especialistas em Genética em termos de exames laboratoriais.

“Não colaborámos na recuperação dos corpos nos locais onde terão sido encontrados, porque infelizmente, quando fomos contactados, os corpos já tinham sido retirados, colocados em sacos próprios de cadáveres. O nosso trabalho foi a individualização dos corpos que estavam

misturados, determinar as características de cada corpo – sexo, idade, estatura, etc. – e depois partir para os estudos de genética com a colaboração do Laboratório de Genética do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e do Laboratório da Polícia Científica”, relata.

Duarte Nuno Vieira explicou que a identificação genética é um estudo comparativo que exigiu a existência de amostras de referências das famílias daquelas pessoas a quem se suspeitava que os corpos pudessem corresponder. “Conseguimos obter amostras de irmãos, filhos e pais que permitiram depois chegar à conclusão cientificamente fundamentada de que nenhum dos corpos que foram estudados corresponde às pessoas a quem se presumia que pudesse corresponder”.

CIVICOP já informada permanece em silêncio

O professor Duarte refere que o objectivo das famílias era terem a certeza se os oito corpos apresentados pelo CIVICOP pertenciam ou não aos seus ente-queridos e, por isso, pediram-lhe para intervir em sua representação, o que o Governo angolano autorizou.

“Na altura, tive reuniões com o então ministro da Justiça em Lisboa e depois em Luanda, que manifestou todo o apoio e autorizou a realização desses estudos”, disse, referindo que essa novidade deverá suscitar alguma preocupação ao Governo de Angola, por existirem corpos não identificados e aos quais deverão ser atribuídos nomes.

Duarte Nuno Vieira diz ter já informado ao ex-ministro da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola, então coordenador do CIVICOP, Francisco Queiroz, que, na altura, recebeu a equipa de especialistas forenses saída de Portugal e deu “luz verde” para que fizesse o seu trabalho. Segundo o especialista, o ex-ministro Queiroz garantiu que iria concertar com o actual, Marcy Lopes, e depois lhe informaria da sua decisão, mas, até ao momento, não recebeu qualquer comunicação. “Os resultados estão disponíveis; entregaremos o Relatório logo que o Governo angolano o queira receber”, concluiu.

Falsos especialistas brasileiros?

O médico legista diz desconhecer o que terá levado a CIVICOP a suspeitar que aqueles seriam os corpos das pessoas indicadas no seu relatório, sustentando que é preciso uma base científica para que não se corresse o risco de devolver corpos que não são os correctos e, com isso, criar-se um sofrimento acrescido às famílias.

“Estes oito corpos já têm o seu perfil de ADN estudados. Sabemos quantos são homens e quantos são mulheres, há até duas crianças, pelas características individuais que tinham na altura. Agora é uma questão de procurar ver quem mais poderia estar naquele local e depois confrontar com as famílias para se poderem devolver estes corpos, dar-lhes nomes e devolvê-los”.

Disse, igualmente, que as ossadas analisadas inclusive têm indícios de pertencer a pessoas mortas há menos tempo, cerca de 20 anos, não sendo, por isso, possível que se tratasse de vítimas de 1977. Por outro lado, indica que a terra recolhida nos ossos aparenta ser diferente da terra encontrada no local em que foram retirados os corpos, o que indica que terão sido transportados doutro lugar.

Duarte Nuno Vieira diz que a sua equipa procurou pesquisar quem foram os supostos especialistas forenses brasileiros que terão participado nas investigações coordenadas pela

CIVICOP, chegando à conclusão de que se trata de meros desconhecidos do ponto de vista de actividade forense.

“Contactámos, nomeadamente, a Academia Nacional de Medicina Legal do Brasil, a Sociedade Brasileira de Medicina Legal e Perícia Médica e a Sociedade Brasileira da Antropologia Forense, mas ninguém conhece as pessoas em causa, nem actividades específicas no âmbito forense feitas por essas pessoas. Não sei de onde vieram, quem são, que qualificações apresentaram, mas posso dizer que não têm experiência do ponto de vista forense”.

Familiares sentem-se ultrajados

“Pessoalmente, fiquei a saber, através da TPA, que supostamente foram encontrados os corpos dos meus pais! A minha avó tem 100 anos. Isso tem a gravidade que tem”. Foi com estas palavras que João Van-Dúnem, filho de José Van-Dúnem e de Sita Valles, reagiu ao Novo Jornal, depois de ser informado sobre a falsidade dos corpos apresentados como sendo dos seus progenitores pela CIVICOP.

O órfão, membro da Associação M27, considera que o processo que levou à criação, pelo Presidente da República, da CIVICOP tem sido uma tragédia desde o início, eivado de falta de transparência e de rigor. Uma posição que a Associação dos Órfãos a que pertence e outras ligadas à Plataforma 27 têm tentado fazer chegar a público, sobretudo aos angolanos.

João Van-Dúnem considera que, se o Estado quisesse no mínimo restaurar a confiança das famílias das vítimas do 27 de Maio, teria promovido uma investigação histórica séria e independente, a fim de explicar as circunstâncias em que ocorreu o desaparecimento físico de milhares de cidadãos nacionais sem ao menos serem julgados. Reprova o facto de a CIVICOP não incluir nos seus trabalhos os verdadeiros representantes dos familiares das vítimas, optando por trabalhar apenas com a Fundação 27 de Maio, a quem não reconhece legitimidade para o representar.

O filho de Sita e de Zé Van-Dúnem questiona ainda como é que um processo como esse não tem a participação de organizações com experiência nessa matéria, como a ONU e a Cruz Vermelha, a exemplo do que acontece noutros países que viveram situações semelhantes. Por fim, criticou a falta de transparência na contratação das equipas de trabalho forense envolvidas no processo, sem qualquer concurso público.

«Mortas pela segunda vez»

José Fuso, membro de direcção da Associação 27 de Maio (que integra a Plataforma 27 de Maio), refere que é difícil digerir esta informação, pois se deu esperança às famílias de que poderiam, finalmente, fazer o seu luto, o que não se cumpriu.

“O sentimento é de que essas pessoas foram mortas pela segunda vez”, lamenta, considerando que tal facto suscita bastantes dúvidas em relação aos últimos corpos que foram entregues a familiares em Angola.

O sobrevivente realça o gesto nobre do Presidente da República, João Lourenço, em pedir perdão em nome do Estado, mas refere que as pessoas escolhidas para conduzir o processo executaram mal o seu trabalho.

“Não podemos confiar na CIVICOP, aliás, penso que essa terá morrido, pois nunca mais se ouviu falar, e, mesmo quando estava activa, nunca chegou a assumir uma posição correcta em relação às associações da Plataforma 27 de Maio, preterindo-as e dando destaque à Fundação

27 de Maio, que não era de todo representativa do universo 27 de Maio e que se intitulou único representante, acabando por ser aceite como tal.

João Saraiva de Carvalho, membro da direcção da M27, associação de órfãos de vítimas do 27 de Maio, diz sentir-se enganado e ultrajado por todo o processo conduzido pela CIVICOP.

Filho de Gilberto Saraiva de Carvalho, morto quando ele tinha apenas três anos de idade, João diz pensar que mais importante do que se construir um monumento no valor de 50 milhões de dólares em memória das vítimas dos conflitos políticos seria encontrar a verdade sobre a localização dos verdadeiros corpos dos seus familiares.

“Carta a Angola” pede a verdade

Numa carta dirigida aos “irmãos e irmãs angolanos”, os órfãos da Associação M27 referem que não conseguirão ultrapassar a tragédia e aprender com ela “se continuarmos a recusar-nos a enfrentar verdadeiramente os factos”.

“E é por ser este o nosso convencimento que vimos publicamente exprimir a decepção com todo este processo e nos dirigimos ao povo angolano e ao País pedindo que se una na busca da verdade, porque essa é a única que nos pode verdadeiramente permitir acertar contas com o passado e construir um futuro liberto de mágoas e de ressentimentos”, lê-se.

A carta começa por falar do sofrimento e das privações vividas pelos órfãos e demais familiares das vítimas do 27 de Maio ao longo de todos estes anos, facto que mudou com a chegada à Presidência da República de João Lourenço, que “reconheceu, pela primeira vez na história da Angola Independente, os excessos do Estado nos acontecimentos que se seguiram ao 27 de Maio, prometeu justiça e dignidade para os mortos, paz e reconciliação entre os vivos”.

“Admitiu publicamente as mortes de cidadãos às mãos do Estado, comprometeu-se com a emissão das correspondentes certidões de óbito, a identificação e entrega dos restos mortais às famílias, para a realização das exéquias fúnebres. Esse gesto, olhado inicialmente com desconfiança, por ser inédito, por ter lugar em ano anterior ao de eleições, porque esperámos tanto tempo que já tínhamos desesperado, acabou por ser reconhecido por todos nós como o primeiro sinal genuíno de busca pública da verdade e de intenção de reconciliação”, escrevem.

Os órfãos da Associação M27 admitem que a CIVICOP nunca lhes inspirou confiança, “porque envolvia pessoas intimamente ligadas à repressão em Maio de 1977, que nenhum interesse terão na reposição da verdade; porque também não incluiu representantes das vítimas; porque nunca tornou claros os procedimentos que estava a seguir na localização e identificação dos cadáveres”.

Em jeito de crítica, apontam a “máquina de propaganda” usada para anunciar publicamente a possível localização de cadáveres de pessoas cujos nomes foram publicitados nas televisões, “enquanto se exibiam esqueletos humanos, reavivando sentimentos de profunda comoção e sofrimento nas famílias”.

“Ouvimos pronunciar o nome dos nossos pais e o de pais de companheiros nossos, órfãos também na sequência daqueles massacres. Ali estavam os restos mortais que encerrariam um capítulo da história. Foram entregues corpos em cerimónias públicas amplamente televisionadas, em véspera de eleições presidenciais. Foram realizadas cerimónias fúnebres. O País viu. Todo o País viu e viveu esse momento como um tempo de verdade e reconciliação”, lamentam.

Os órfãos referem que foi com “espanto e dor” que feitos os exames por eles solicitados a especialistas independentes se concluiu que “nenhuma das amostras corresponde à de cadáveres dos nossos pais…!”

“Objectivamente, aquilo a que assistimos foi um exercício de crueldade, em que se reavivaram gratuitamente sentimentos de perda, de dor e de mágoa, com objectivos que nada têm de nobre”, lê-se na carta em que os órfãos das vítimas do 27 de Maio questionam “o que se passará com os restos mortais já entregues às famílias e enterrados sem exames prévios” e “quantas mais pesquisas e indagações serão necessárias para se chegar à verdade”.

“A verdade – sabemo-la todos – é que estão vivos e identificados muitos dos responsáveis e participantes na repressão. E a questão que colocamos, legitimamente, é a seguinte: Porquê que, com total transparência, essas pessoas não são chamadas a indicar, sob juramento, os locais onde foram enterrados ou lançados os corpos a que tiraram ou mandaram tirar a vida”?

Fonte: NJ

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