Humorista Kotingo fala sobre a sua relação com o músico Gerilson Insrael
O humorista Kotingo, em entrevista exclusiva ao Jornal O País, disse que uma das coisas que o acidente lhe trouxe é a valorização da sua família
O humorista de 36 anos, natural de Benguela, falou ainda dos momentos difíceis por que passou até alcançar a fama, bem como o apoio recebido durante o tempo em que se encontrava internado em Portugal.
É uma das referências no país, quando se fala de humor. Como descobriu o seu lado humorístico?
As primeiras vezes que eu actuei foi por causa de dinheiro. Isso entre 2007/2008. Comecei a fazer áudios, satirizava algumas histórias. Uma das vezes, alguém estava a gravar e o vídeo começou a circular. Isso despertou a atenção da vizinhança. Com base nisso, fui convidado para me apresentar em alguns eventos, com destaque para o dos “Tuneza”. Esse foi espectacular! Foi a primeira vez que tive contacto com mais de duas mil pessoas. Foi aí que me assumi como humorista.
Essa actuação impulsionou a sua carreira?
Despois dessa actividade fui convidado para outros eventos. O realizador era o mesmo, o Sílvio Lundgelo, a quem agradeço muito, por ter dado esse empurrão, para aceitar- me como humorista e levar como uma profissão. Fiz a apresentação e gostei muito mais ainda. Mas com o tempo, queria muito mais do que aquilo, porque já tinha atingido o último nível provincial. Através do convite do Adilson da Gruta, a quem também sou muito grato, levou-me ao Lubango para participar no show do Calado Show. fiz e foi brutal. Ate agora faz parte de um dos melhores Shows da minha vida.
Teve a mesma recepção em Luanda?
Vim à capital do país em 2010 e não foi fácil. Ouvi falar do evento “Artes ao vivo”. Inscrevi-me para participar. Mas para minha surpresa não fui chamado. Até hoje não me explicaram porque não actuei. Até entendo que por algum motivo não aconteceu, mas por uma questão de respeito deviam dar alguma explicação. Não conhecia a cidade, foi mesmo só uma aventura. Durante os oito meses não aguentei e voltei por causa do imediatismo. Vim consciencializado de que durante um, dois, no máximo três meses poderia acontecer, mas não foi assim. Recuei, voltei para Benguela, mas não me sentia bem. Passo isso aos novos talentos, aqueles que estão a tentar fazer uma carreira em qualquer ramo social, que o imediatismo dá cabo de nós.
Mas nunca pensou em desistir do seu sonho?
Não. Houve uma situação em que vi o meu pai a ser humilhado, ao implorar o meu tio para fazer constar o meu nome na lista de um evento em Benguela, onde participaram vários artistas de Luanda. Era um evento que ele viu como uma oportunidade para mim, porque estavam presentes também vários empresários. A humilhação que vi o meu pai passar foi o suficiente para vir tentar novamente em Luanda, desta vez com mais firmeza.
Estando cá, tive um grande apoio da minha família. Lutei até atingir o sucesso. Tinha muitas pessoas por perto e até hoje tenho. Mesmo para superar a minha deficiência tenho por perto pessoas que realmente gostam de mim.
Como foi esse processo, até atingir à fama?
O primeiro evento foi no Miramar, na Quinta Especial. Em Benguela conheci muitas pessoas de Luanda. Pessoas do Show Biz. No dia seguinte, me apresentei no evento Quinta Especial e fui muito bem recebido. Às vezes, dá-nos à impressão que não estás a ser visto, mas somos sim. Na semana seguinte o Nicolas Ananás e o Cage One levam-me à seguir para a Terça do Yure Barata. A minha apresentação foi também espectacular.
De que modo o apresentador de televisão Benvindo Magalhães (BV) ajudou na promoção do seu trabalho?
Depois de actuar na Terça do Yure Barata o BV veio ter comigo, reconheceu o meu talento e decidiu apoiar-me. No programa Tchilar apresentei as minhas anedotas e foram também bem recebidas. Teve grande repercussão. Nos eventos que ia com o BV fui interagindo com outras pessoas. Um dos maiores presentes que podemos dar aos nossos filhos é o berço. A educação. Se eu consigo me manter em Luanda é graças a educação que o meu pai me deu.
Realizou o seu primeiro “grande show em Fevereiro corrente, no Cine Atlântico. Foi de encontro às espectativas?
Tudo correu muito bem. Experimentei mentei anedotas novas. Algumas pessoas esperavam que fosse repetitivo, mas enalteceram a criatividade e improvisos. Espero que ainda esse ano venha a realizar outro no Cine Atlântico. Foi um sonho realizado.
Dá para viver da actividade humorística?
Dá, mas não como gostaria. Estou numa fase de investimento e o retorno ainda não é o desejado. Sempre disse que a minha maior paixão não é o humor. Gosto de ser empresário. Mas por enquanto o que sustenta as minhas necessidades é mesmo o humor. Por exemplo, ainda faço terapias. O meu joelho no acidente saiu. Voltaram a meter e não é a mesma coisa. Isso para encaixar leva tempo. Só que levo mais tempo ainda do que o devia, porque em Portugal não tenho uma fonte de rendimento. Logo, mesmo contra a vontade dos doutores tenho de vir para Angola fazer dinheiro, e depois voltar para Portugal e fazer o tratamento.
Em que se inspira para a criação das suas anedotas?
Me inspiro em tudo que nos rodeia. Deus deu talento a todo o ser humano. Mas só o talento em si, sem pesquisa, treino, disciplina e dedicação, assim como apoio financeiro e moral não é nada. A minha mulher é a minha primeira plateia. Ela também tem dado algumas ideias. Na verdade, às vezes, o que preciso é de um princípio. Se me contares uma história que não tem graça, eu consigo inverter para ter graça. Mas também pesquiso muito. E não tenho muito a dizer, de como faço as minhas anedotas. Esse é o meu segredo. É o que me torna diferente dos outros humoristas. Não estou a dizer que sou o melhor, mas sim diferente. O que faz com que o público escolha um ou outro são às diferenças.
E a tournée Obrigado Angola realizada em Fevereiro foi para agradecer o povo angolano pelo apoio durante o momento difícil que passou?
Foi. Mas não só durante aquela fase, porque desde o meu começo sempre fui muito bem recebido. Eles mostraram mais uma vez, na situação que passei, que são muito meus fãs, que sou muito querido. Não tinha como não fazer essa tournée. E foi das maiores enchentes que tive durante a minha carreira. Em todas as províncias em que passei a aderência foi espectacular. O mais difícil para mim foi no Namibe e em Benguela.
Porque foi mais difícil nessas duas províncias?
No Namibe porque sempre tive as maiores enchentes da minha carreira. Ao subir ao palco, diante de um público que sempre estive com dois braços, estar sem um e ser recebido daquela forma foi muito emocionante. Com muitos aplausos e lágrimas daquelas pessoas que não conseguiram me ver nesse estado. A gritarem o meu nome como sempre, só que daquela vez foi diferente. Vi crianças na fila da frente com lágrimas nos olhos e foi muito difícil. Em Benguela foi quase a mesma coisa, só que tinha a minha família. Vi a minha mãe a chorar por ver o fi lho assim. Foi difícil controlar às emoções? No dia do evento aterrei e não fui ter com a minha família. O meu plano era depois do show era ir ter com eles, porque fiquei com receio de emocionar-me ao vê-los e depois não conseguir fazer um show como devia. Mas só que foi mesmo duro.
Uma das coisas que o acidente me trouxe é a valorização da minha família. Vi que tenho uma sorte muito grande de ter essa família. Não somos ricos, mas temos valores. Infelizmente foi através do acidente que passei a valorizar mais ainda. Então, foi um pouco difícil para mim, mas depois consegui estabilizar- me emocionalmente. Não estava em jogo apenas a minha família, mas o público também. E tinha pessoas com deficiências que estavam ali e foram para colher alguma força vinda do Kotingo. Não podia ser eu a fracassar.
Depois do acidente, o que mudou exactamente na sua vida?
Me tornei numa pessoa muita mais feliz, porque tudo começa dentro do nosso pensamento, e hoje tenho uma outra forma de pensar. Sou muito mais investigador, sei muito mais sobre o meu trabalho e a vida. E passo isso quase sempre que estou em palco. Há coisas com que nos preocupamos e não têm nada a ver. Nos queixamos de coisas às vezes sem motivos. Poderia reclamar mas olho para aqueles que não têm dois braços, mas conseguem sobreviver. Temos de procurar um ponto que nos dê força, que nos incentive a continuar.
Qual foi a sua maior motivação no momento?
Mesmo internado em Portugal, a minha maior inspiração para encarar isso da melhor forma foi o meu colega de quarto. Ele estava há dois anos internado e nunca mais vai andar. Mas o que ele mais pedia era ter alta, receber a cadeira de roda e estar próximo da sua família. E eu que perdi um braço vou achar que a minha vida acabou! Mas isso ninguém me disse. Eu é que tive de buscar essa força. Na altura, a doutora me disse que se salvasse o meu braço não estaria funcional há mais de 50%. Preferi amputar e um dia meter uma prótese que faz mais movimentos. O acidente me trouxe também a grande mulher que tenho. Já valorizava a minha mulher, mas não conforme valorizo agora. Ela tem muitas qualidades que eu não via antes do acidente.
E se pudesse voltar no tempo, o que mudaria?
Não iria à Malanje. Ou se fosse teríamos mais cuidado. Mas é uma coisa imprevisível.
Qual é a sua relação com o músico Gerilson Insrael?
Conheci ele nas Quartas Kotingada. Numa das edições, o Gerilson foi com o seu grupo, composto por três integrantes. Vi-os a cantar, mas quando chegasse a vez dele vi que tinha uma forma diferente de o fazer. Depois comecei a conviver com o grupo. Fui acompanhando o seu trabalho no estúdio. Fomos falando e ele disse que precisava de um empurrão. Eu não via grande progresso do Gerilson enquanto membro de um grupo. Foi assim que decidi apoiar o rapaz sem pensar em ganhar algum dinheiro.
Por acaso já recebeu alguma recompensa por parte do músico?
Nunca recebi nada do Gerilson. Lembro que lhe pedi para me mostrar as músicas que tinham em solo. Uma das coisas que me impressionou, além de cantar, pela idade que tem compõe de forma extraordinária. Os bits ele é que faz. Tudo que uma música precisa ele faz sozinho. Foi assim que aprofundei mais na vida dele e percebi que era muito lastimável. Como era… Pus-lhe a viver com um amigo e dava apoio. Não vou dizer que dei tudo que eles precisavam. Desafiei a mim mesmo de que ele tinha de acontecer, assim como o BV fez comigo devido o talento. Só que com ele foi muito mais do que isso, porque havia muitas necessidades básicas. Então, Kotingo vai para o Lubango, Gerilson também vai. Comprava pesagens de ida e volta mais no sentido de divulgar a sua imagem. Sempre acreditei que ele iria acontecer, porque tem talento.
Então não ficou surpreendido com a sua premiação no Top dos Mais Queridos no ano passado, o segundo lugar?
Não! O segundo lugar não me convenceu. Por mim, levaria o primeiro lugar.
Acredita que pela mensagem a música estava em condições de vencer o concurso?
Não só pela mensagem. O nível de público que atingiu. E depois não só! Os fãs do Kyaku Kyadaff são da minha faixa-etária para cima. Nós não temos tempo de ir votar. O Gerilson é para os novinhos. Os nossos filhos votam. E depois, o factor novidade. Ele é novidade. Não é que seja melhor do que o Kyaku, mas ele é novidade. Assim como um humorista que vem depois de mim. Eu já não sou novidade. Logo a recepção vai ser diferente.
Teve alguma participação nesta música?
Não foi só nessa música. Em várias… Não foi eu quem escreveu a Lena bêbada. Simplesmente dei a ideia. Contei a história. O objectivo era de falar de algo que nunca ninguém falou. Sei que todo o sucesso que ele tem não tem a haver muito comigo, porque é muito dedicado. O que fiz foi dar o apoio e algumas ideias.
Porquê se assume como irmão ?
Algumas pessoas víam traços entre nós. Foi assim que decidimos assumir, porque ajudaria também na sua projecção. Nem se quer pensei na minha família. Tudo que devia ter dado dei. Logo, os meus irmãos foram obrigados a assumi- lo também como irmão. Realmente fiquei estupefacto quando as pessoas ligavam para mim, a dizer que ele não era meu irmão. Coisa que ele disse numa entrevista. Então algo que você próprio deu a iniciativa, hoje vens em hasta pública dizer que não! Aí vou ter que concordar com alguns comentários que vi: quando precisaste era teu irmão, mas agora que atingiste o sucesso já não é.
E o que tens a dizer diante desta situação?
Ele é muito talentoso. Venham coisas que vierem da parte dele, até mesmo negativas, coisas que eu não goste, não vai conseguir matar o fanatismo que tenho por ele. E não faria nada para prejudicar o seu trabalho. A questão da gratifi cação não tem nada a haver. E se eu disser que não sinto, minto. Dói sim. Porque deixei de dar aos meus fi lhos para dar a ele. Obriguei a minha família a aceitá-lo como irmão. Não vou dizer que sou o homem mais correcto. Não me arrependo de ter ajudado as pessoas que ajudei.
Fonte: Jornal O País